Falta pouco mais de uma semana para o lançamento do aguardadíssimo Ghost of Tsushima, o promissor exclusivo da Sony que coloca o jogador na pele de um samurai durante a invasão mongol no Japão. O jogo acompanha uma linha histórica com poucos precedentes na indústria, fazendo ode aos clássicos filmes samurais conhecidos como jidaigeki e desapegando de elementos místicos ou sobrenaturais, na contramão de títulos como Nioh e Sekiro – para quem tropeçou no termo jidaigeki, há um glossário no fim do artigo.
Nele, a fantasia dá vez ao drama real sofrido pelos povos que viviam em conflitos durante o conturbadíssimo século XIII, período onde os males colaterais das guerras assolavam mais que qualquer criatura concebida na série Onimusha. A tirania dos imperadores e a selvageria dos povos que lutavam, sobretudo contra a fome, dificilmente recheiam a narrativa dos jogos de samurai, mas com certeza carimba obras cinematográficas que são as principais inspirações para Ghost of Tsushima.
Encarnar um samurai que luta para amenizar a dor de seu povo, em meio a intrigas geopolíticas com batalhas curtas e brutais, é algo que se distancia consideravelmente de como o samurai vem sendo retratado nas mídias, principalmente em mangás e animes, comumente em representações tão caricatas que parecem até paródias do Bushido.
O motivo da tardia representação clássica de samurais a lá filmes de Kurosawa certamente tem a ver com a febre dos ninjas, evidente entre o fim dos anos 80 e a primeira metade dos anos 90. Era Tartarugas Ninja e 3 Ninjas Contra-Atacam na televisão aberta, Shinobi, Ninja Gaiden e os icônicos ninjas de Mortal Kombat nos vídeo games. Ficava difícil para os samurais competirem, ainda mais se tratando de jogos onde a dinâmica na jogabilidade era muito mais atraente com habilidades de ninjutsu.
Aqui vale abrir um parêntese para distinguir Samurais de Ninjas, onde estes primeiros se distinguem por utilizarem um código de honra muito específico em combates próximos que asseguram a possibilidade de defesa de seus oponentes, e os segundos se distinguem por utilizar qualquer artificio que seja eficiente para neutralizar o alvo, preferencialmente de forma indetectável através de técnicas furtivas. Isso deixa claro o porquê dos Ninjas serem tão populares nos jogos, até mesmo onde o protagonismo de um jogo é do samurai ele acaba tendo um ninja que rouba a cena – Samurai Shodown (Arcade) é o grande exemplo, quem precisa de Haohmaru quando se tem Hanzo Hattori?
Com isso, a conduta do samurai acabou sendo diluída e o que passamos a ver nos jogos de temática oriental foi uma espécie de combatente híbrido, combinando especialidades de ambas classes. Pelo que podemos ver, Ghost of Tsushima segue por aí, exatamente como um mix entre Tenchu (PS1) e Way of The Samurai (PS2), possibilitando maior versatilidade ao jogador. Vale ressaltar que o desenvolvimento de diferentes técnicas de batalha tem respaldo na narrativa, onde o protagonista, Jin Sakai, percebe as limitações de suas técnicas de samurai e passa a adotar uma técnica furtiva digna de um "fantasma", sob o árduo custo do desapego de tradições.
Dito isso, Ghost of Tsushima se apresenta como um prato cheio para quem busca um balanceamento entre uma experiência realista em um Japão feudal e combates que fogem da monotonia do kenjutsu. O mais próximo que os jogadores puderam experimentar disso em um joystick foi através do jogo Sword of Samurai, lançado em 1989 pela inovativa MicroProse; essa pérola dos retro games gabarita os principais ingredientes de um drama samurai, com intrigas políticas, estratégias diplomáticas, combates em perspectivas diferenciadas e um pano de fundo que contextualiza o jogador no período em que o jogo se passa. Os chiptunes que sintetizam sons do koto japonês e a pixel art paisagista são charmes a parte, além de contar com o selo Sid Meier de qualidade em inteligência artificial.
Sem sombra de dúvidas podemos dizer que é um jogo obrigatório para quem quer entrar no clima da experiência que Ghost of Tsushima promete proporcionar, assim como Kensedein (Master System) é obrigatório para quem vai se aventurar em Nioh e Sekiro. Quanto a The Second Samurai (Mega Drive), vamos deixar esta recomendação de lado já que não há nada sequer parecido com a viagem de ácido que é este jogo.
Já que mencionamos esta pérola dos 8 bits, apesar de trazer uma proposta completamente diferente e que não consegue proeminência perante os jogos de ninjas, Kenseiden apresenta uma atmosfera sombria típica em obras de kaidan. Aqui, a exuberante paleta de cores do Master System acaba sendo contraprodutiva na ambientação, por isso a sugestão é ligar o modo "oldschool" de jogar em preto e branco (para alívio daquela avó que dizia que jogar vídeo game em TV a cores estraga o televisor).
Essa proposta pode até parecer absurda para quem não sabe que até mesmo Ghost of Tsushima oferece um "classic samurai cinema mode", onde toda a experiência do jogo é proporcionada em tons de cinzas. A ideia dos desenvolvedores é justamente transpor o jogador ao seu jidaigeki preferido. Claro, se você ainda não é fã de nenhum desses filmes, dá tempo de assistir alguns antes de mergulhar no jogo. Aqui eu deixo uma lista daqueles que mais me impactaram, separados por diretores, e que pode te convencer a ligar o "cinema mode" no jogo assim que possível.
1 – Akira Kurosawa – Os 7 Samurais (1954), Yojimbo (1961), Ran (1985) e Trono Manchado de Sangue (1957)
O mestre Kurosawa é a principal referência do gênero e estes filmes comprovam o título de gênio. Cada um deles é importante para entender a gama de elementos abordados na obra do diretor e eles se complementam para retratar os períodos que antecedem o fim da ditadura Tokugawa. Os 7 Samurais aborda a honra e a valentia de guerreiros em defesa de uma ameaça de foras-da-lei em uma vila local, enquanto Ran adentra questões de famílias poderosas em jogos de intriga que ocasionam batalhas épicas. Yojimbo é a divertida aventura de um ronin durão cuja astúcia é tão afiada quanto sua espada, enquanto Trono Manchado de Sangue (para mim) aparece como a cereja do bolo, mostrando as loucuras cometidas e sofridas por militares em disputas hierárquicas.
2 – Masaki Kobayashi – Harakiri (1962), Inochi Bonifuro (1971) e Kwaidan (1964).
Se eu precisasse te convencer a gostar desse tipo de filme e tivesse apenas uma tentativa, com certeza iria sugerir Harakiri. O filme consegue ambientar o espectador em poucos segmentos, causando aflições e expectativas que culminam em um chanbara de tirar o fôlego.
Assim como Kurosawa, Kobayashi dedicou boa parte de sua obra a abordar os males consequentes das guerras, o que fez com maestria em guerras de nível global além de também deixar sua marca ao retratar o pós-guerra de confrontos civis que marcaram o período Sengoku. Em Inochi Bonifuro o movimento banditista que surge como alternativa de sobrevivência se faz presente em um drama bem-humorado, com belos diálogos, que subverte e romantiza a resistência ao Shogun em análises mais profundas. Lembrando um pouco os filmes sobre o cangaço que se esgueiravam pela censura da ditadura nos anos 60 e 70 – fica aqui a dica aos fãs do cinema de Glauber Rocha.
Kwaidan não fica de fora da lista, mesmo se distanciando do gênero Jidaigeki para centralizar suas histórias em lendas fantasmagóricas que permeiam a mitologia e o folclore japonês. Vemos um pouco disso na jogatina de Kenseiden e Nioh, que possivelmente bebem da fonte desta antologia dividida em quatro partes, uma mais sombria que a outra.
3 – Hideo Gosha – Tirania (1969), Hitokiri (1969) e Jittemai (1986).
Fechando o que, para mim, consiste na trindade de grandes diretores do tema, Hideo Gosha colore o preto e branco da maioria dos filmes citados aqui com bastante vermelho. Seja pelo sangue ou pelo fogo, o chocante e o brutal apresentado pelo diretor eleva o drama samurai para algo bem próximo do que gostaríamos de ver em um jogo de vídeo game. A belíssima cinematografia de Tirania se complementa com as brutais cenas de ação em Hitokiri, enquanto Jittemai introduz o protagonismo feminino em um período onde o bushido é deixado de lado no emprego da espionagem. Isso consiste bastante no que estamos prestes a experienciar em Ghost of Tsushima e eu aposto que este protagonismo feminino em um período onde o bushido é deixado de lado no emprego da espionagem. Isso consiste bastante no que estamos prestes a experienciar em Ghost of Tsushima e eu aposto que este protagonismo feminino pode acabar surgindo para capacitar nosso herói nas artes do ninjutsu.
Bônus – Kenji Mizoguchi – Oharu (1952), Contos da Lua Vaga (1953), O Intendente Sansho (1954) e Os Amantes Crucificados (1954).
Já que citei protagonismo feminino em filmes japoneses de época, seria um sacrilégio não mencionar a obra de Kenji Mizoguchi, que só não consta como um dos membros da trindade listada aqui porque seus filmes fogem do gênero jidaigeki. O drama samurai dá vez a diversas críticas sociais que antagonizam o patriarcado japonês, a hierarquia social e a opressão estatal sob o ponto de vista da mulher. Não seria surpreendente se algum destes tormentos surgisse como side quests na jornada de Ghost of Tsushima, fazendo estas recomendações vir a calhar.
Com estas menções de jogos e dicas de filmes, espero ajudar a ambientar quem pretende ter uma experiência imersiva no jogo. Como grande entusiasta do tema, meus perfis nas redes sociais estão abertos pra gente trocar uma ideia sobre essas dicas e tudo que for relacionado a este promissor jogo que presenteia os fãs de samurais mundo afora.
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